A partir do ato interpretativo regido dessa maneira, tanto pelo sensível quanto pelo inteligível, o sujeito investigativo procura extrapolar de modo abstrato as linhas, buscando as entrelinhas ou as estruturas subterrâneas do texto. Esse interprete não descarta nenhuma possibilidade de conhecimento. Nessa perspectiva, do mesmo modo que percorre as estruturas íntimas do texto, também faz com que os elementos investigados dialoguem com as exterioridades textuais. O elemento sobre o qual nos referimos, pode ser entre outros, uma personagem, o narrador, enfim, qualquer elemento textual que possa ser estudado como um fundamento epistemológico ou como produtor de sentidos.
Nos romances de Milan Kundera, Don Juan desponta, na nossa concepção, como esse elemento produtor de sentidos, sendo, portanto, aquele que orientará a atividade investigadora na obra kunderiana. Dessa forma, sentimo-nos autorizados a denominá-lo enquanto o fundamento epistemológico da obra, ou seja, o elemento que irá autorizar – a partir de suas ações e relações no seio da narrativa - as reflexões acerca da estética romanesca desse autor.
A ficção kunderiana se insere numa perspectiva estética adotada pelos grandes romancistas do século XX, a de procurar no romance a possibilidade de “exprimir uma nova concepção da realidade e uma nova forma de orientação em um mundo em que a ciência e a filosofia não são mais capazes de fornecer uma imagem totalizante.” O próprio Kundera, a partir da compreensão de Descartes de que o homem seria “senhor e dono da natureza”, coloca diante de si as seguintes indagações e constatações do presente,
Depois de ter conseguido milagres nas ciências e na técnica, este “senhor e dono” se dá conta subitamente de que não possui nada e não é senhor nem da natureza (ela se retira, pouco a pouco, do planeta) nem da História (ela lhe escapou) nem de si mesmo (ele é guiado pelas forças irracionais de sua alma). Mas se Deus foi embora e o homem não é mais senhor, quem então é senhor? O planeta caminha no vazio sem nenhum senhor. Eis a insustentável Leveza do ser.(1988:p 41)
O romance kunderiano é assim, fruto dessas inquietações acerca de seu tempo, e, como meio de testar as possibilidades humanas dentro de um mundo que não mais se sustenta nos paradigmas modernos, é que Milan Kundera coloca em movimento os ditos “egos experimentais”. Na concepção do romancista, a grande diferença entre a Filosofia e a Literatura reside na relação com a experiência, pois enquanto aquela realiza sua atividade num campo puramente abstrato, sem dispor de condições para testar a validade do que foi pensado, esta dispõe dos egos experimentais para fazê-lo e, portanto compreender melhor as possibilidades humanas. Nesse sentido é possível a afirmativa de que para Milan Kundera, os egos experimentais, extrapolam a denominação do que correntemente se entende por personagem, eles são, além de criações ficcionais, portadores da função de validar, problematizar ou negar as reflexões da voz filosófica que emerge das estruturas textuais. Ademais, essas criações do modo como o autor as define, permitem que as idéias e as reflexões contidas no romance ultrapassem o final da narrativa e, ao contrário do que acontece com os produtos de criação estética que não observam os princípios de dialogicidade, as consciências criadas por Milan Kundera ou o feixe de idéias e sentidos da qual são portadoras, continuam a ecoar mesmo quando finda a última página do livro.
Fragmento do artigo "O donjuanismo na obra de Milan Kundera", de Maria Veralice Barroso e Wilton Barroso Filho . *
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