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segunda-feira, 9 de abril de 2012

"... pela frente treze dias."

 Compartilhar a genialidade de alguém é sempre memorável, diante disso tenho aqui um presente. São as quatro ultimas partes de "O Jogo da Carona", conto kunderiano.

- Um casal em férias resolve fazer o típico joguinho de "vestir papeis" (ela: mulher que pede carona. Ele: chofer desconhecido), que a priori é uma mera ingenuidade. Porém, no decorrer do conto, os "amigos" afastam a penumbra do idealismo (que cada um tem de si) e se chocam ao humano, a realidade, o bruto. Tudo em um paradoxo magnífico que envolve o leitor. 


O jogo da carona. (trechos) 

9
Era um jogo engraçado. Era estranho, por exemplo, que o rapaz, embora perfeitamente colocado no papel do motorista desconhecido, não deixasse sequer por um momento de ver sua amiga na personagem da garota da carona. Tal fato, justamente, lhe era penoso, ver sua amiga ocupada em seduzir um desconhecido e ter o triste privilégio de assistir à cena, ver de perto o aspecto que ela apresentava e o que ela iria dizer quando o enganasse (quando fosse enganá-lo), tinha a honra paradoxal de servir, ele mesmo, de incentivo à sua infidelidade.

O pior era que ele a adorava mais do que amava, sempre sentira que a moça tinha realidade apenas dentro dos limites da fidelidade e da pureza e que, além desses limites, ela deixaria de ser ela mesma assim como a água deixa de ser água a partir do ponto de ebulição. Quando a via atravessar essa temível fronteira com uma elegância tão natural, sentia crescer sua raiva. 

Ela voltou do toalete queixando-se: -Um sujeito me disse “Quanto senhorita? “
-Não fique espantada! Você esta com aparência de puta.
-Sabe que não estou nem ligando?
-Você devia ter ficado com o tal sujeito!
-Mas estou com você.
-Pode encontrá-lo mais tarde.Basta combinar com ele.
-Ele não me agrada.
-Mas não iria absolutamente incomodá-la ter muitos homens na mesma noite.
-Por que não? Desde que sejam bonitões.
-Você prefere um depois do outro ou todos ao mesmo tempo?
-As duas coisas.

A conversa tornava-se cada vez mais escabrosa. Ela estava um pouco chocada, mas não podia protestar. No jogo, o homem não é livre, para o jogador o jogo é uma armadilha, se não se tratasse de um jogo, e se fossem um para o outro dois desconhecidos, a garota da carona já poderia ter-se ofendido há muito tempo e partir,mas não há meios de escapar a um jogo, o time não pode fugir do campo antes do fim, os peões do jogo de xadrez não podem sair das casas do tabuleiro, os limites do campo são intransponíveis. A moça sabia que era obrigada a aceitar qualquer coisa pelo simples fato de que se tratava de um jogo. Ela sabia que quanto mais longo o jogo fosse levado, mais seria um jogo e mais seria obrigada a jogar docilmente. De nada adiantaria pedir socorro à razão e avisar a alma espantada para guardar distância e não levar o jogo a sério. Justamente por ser um jogo, a alma não sentia medo, não se defendia e se abandonava ao jogo como a uma narcose.

O rapaz chamou o garçom e se levantou. -Vamos embora – disse ele
-Aonde? perguntou ela, fingindo não entender.
-Não faça perguntas!Venha!
-Olhe como você fala comigo!
-Como falo a uma puta.

10
Subiram uma escada mal iluminada, no alto, um grupo de homens um pouco embriagados esperava em frente ao banheiro. Ele a abraçou pelas costas de maneira a ter um de seus seios na palma da mão. Os homens que estavam perto do banheiro perceberam o fato e começaram a dar gritos. Ela quis se desvencilhar, mas ela mandou que se calasse. -Fique quieta! Disse ele, o que os homens acolheram com solidariedade brutal e alguns ditos obscenos dirigidos à moça. Chegaram ao primeiro andar. Ela abriu a porta do quarto e acendeu a luz. Era um quartinho com duas camas, uma mesa, uma cadeira e uma pia. O rapaz empurrou o ferrolho da porta e se virou para a moça. Ela ficou diante dele numa atitude provocante, com uma sensualidade insolente nos olhos. Ele a olhava e se esforçava para descobrir por trás dessa expressão lasciva os traços familiares que amava com ternura. Era como olhar duas imagens na mesma objetiva, duas imagens superpostas aparecendo transparentes uma sobre a outra. Estas duas imagens superpostas diziam-lhe que sua amiga podia ter tudo dentro de si, que sua alma era terrivelmente amorfa, que a fidelidade podia existir nela tanto como a infidelidade, a traição como a inocência, a sedução como o pudor, essa mistura selvagem lhe parecia tão repugnante quanto a mistura de um depósito de lixo. As duas imagens superpostas apareciam sempre transparentes, uma embaixo da outra, e o rapaz compreendia que a diferença entre sua amiga e as outras mulheres era uma diferença muito superficial, que no mais profundo do seu ser sua amiga era semelhante às outras mulheres, como todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os vícios possíveis, o que justificava suas dúvidas e seu ciúmes secretos, que a impressão de contornos delimitando a sua personalidade não era senão uma ilusão a que o outro sucumbia, aquele que a olhava, isto é, ele mesmo. Ele pensava que essa moça, tal como a amava, não era senão um produto de seu desejo, de seu pensamento abstrato, de sua confiança, e que sua amiga, tal como era realmente, era essa mulher que estava ali, desesperadamente outra, desesperadamente estranha, desesperadamente polimorfa. Ele a detestava.

-O que você está esperando? Tire a roupa!

Ela inclinou a cabeça coquetemente e disse -É preciso?

Este tom ecoava em seu ouvido um eco muito familiar como se outra mulher já lhe tivesse dito isso há muito tempo, mas nem sabia mais qual delas. Queria humilhá-la. Não à moça da carona, mas a ela, sua amiga. O jogo acabava se confundindo com a vida. O jogo de humilhar a moça da carona não era senão um pretexto para humilhar sua amiga. Ele esquecera que era um jogo e detestava a moça que estava ali diante dele. Encarou-a, depois tirou uma nota de cinqüenta coroas e lhe estendeu - Chega.?

Ela pegou as cinquenta coroas e disse -Você não é muito generoso.
-Você não vale mais do que isso – disse ele

Ela encostou o corpo no dele: - Você está se comportando mal comigo. Tem que ser mais gentil. Faça um esforço!

Ela o abraçou, estendendo os lábios para ele. Mas ele pôs os dedos em sua boca, afastando-as com suavidade. -Só beijo as mulheres que amo.

- E a mim você não ama?
-Não.
-Quem você ama?
-Isso é da sua conta...Tire a roupa!

11
Nunca ela se despira assim. A timidez, a sensação de pânico no mais profundo de seu ser, a vertigem, tudo aquilo que sentia quando se despia em frente ao rapaz (e que ela não podia dissimular na escuridão), tudo aquilo desaparecera. Permanecia diante dele, segura de si, insolente, em plena claridade, e surpresa por descobrir de repente gestos até então desconhecidos ao tirar a roupa de forma lenta e embriagadora. Atenta a seus olhares, ela tirava a roupa, uma peça depois da outra, amorosamente, saboreando cada etapa desse despojamento.

Mas em seguida, quando ficou completamente nua diante dele, pensou que o jogo não podia continuar, que ao se despojar de suas roupas havia tirado a máscara e estava nua, o que significava que era apenas ela mesma e que o rapaz precisaria tomar a iniciativa de vir na sua direção, fazer um gesto com a mão, um gesto que apagaria tudo e a partir do qual só haveria lugar para suas mais íntimas carícias. Ela estava nua diante dele e havia parado de jogar, sentia-se embaraçada, e o sorriso que na realidade pertencia somente a ela apareceu em seu rosto, um sorriso tímido e confuso.

Mas ele permanecia imóvel, não fazia nenhum gesto para acabar com o jogo. Não via seu sorriso,que no entanto era tão familiar, só via diante de si o belo corpo desconhecido de sua amiga, que ele detestava. A raiva tirava de sua sensualidade todo o verniz sentimental. Ela quis se aproximar, mas ele disse - Fique onde está, para que eu a veja bem. Desejava apenas uma coisa, tratá-la como uma prostituta. Jamais conhecera uma prostituta e a idéias que fazia delas lhe fora transmitida pela literatura e por ouvir falar. Foi essa a imagem que evocou, e a primeira coisa que visualizou foi uma mulher nua com meias pretas, dançando na tampa lustrosa de um piano. Não havia piano no quarto do hotel, apenas uma pequena mesa encostada na parede, coberta com uma toalha. Mandou que sua amiga subisse nela. Ela fez um gesto de súplica, mas...-Você foi paga para isso – disse ele. 

Diante da implacável decisão que percebeu em seu olhar, ela se esforçou para prosseguir com o jogo, mas não tinha mais forças. Com lágrimas nos olhos, subiu na mesa. A mesa media quando muito um metro de comprimento por um de largura e estava bamba de pé em cima dela, sentia medo de perder o equilíbrio.

Ele estava satisfeito de ver esse corpo nu que se elevava diante de si, e cuja insegurança medrosa fazia com que se tornasse ainda mais tirânico. Queria ver esse corpo em todas as posições e sob todos os ângulos, como imaginava que outros homens o tinha visto e o veriam. Tornara-se grosseiro e sensual.Dizia palavras que ela nunca o ouvira pronunciar. Ela queria resistir, escapar desse jogo, chamou-o pelo nome, mas ele a obrigou-a a calar-se, dizendo que ela não tinha o direito de lhe falar nesse tom familiar. Acabou cedendo, transtornada, quase em pranto.Inclinou-se para a frente depois abaixou-se, obedecendo ao desejo dele, fez a saudação militar, depois um requebro para dançar um número de twist, mas, num movimento brusco,fez a toalha deslizar e quase caiu. Ele a amparou e a levou para a cama.

Abraçou-a. Ela ficou contente, pensando que o jogo sinistro terminara, que de novo iam ser como eram na realidade, quando se amavam. Quis encostar os lábios nos dele, mas ele a afastou, repetindo que só beijava as mulheres que amava. Ela explodiu em soluços. Mas nem conseguiu chorar, porque a furiosa paixão do amigo se apoderou pouco a pouco do seu corpo, terminando por abafar os gemidos de sua alma. Logo depois havia apenas dois corpos perfeitamente unidos na cama, sensuais e estranhos um ao outro. O que acontecia agora era o que ela sempre temera mais que tudo no mundo, o que sempre evitara: o amor sem sentimento e sem amor. Sabia que atravessara a fronteira proibida, além da qual se comportava sem a menor reserva e em total comunhão. Apenas experimentava, num recôndito do seu espírito, uma espécie de medo ao pensar que nunca sentira tal prazer e tanto prazer como dessa vez. – além dessa fronteira.

12
Depois tudo acabou. O rapaz afastou-se dela e puxou o comprido fio que pendia sobre a cama.A luz apagou-se. Ele não queria ver o rosto dela, sabia que o jogo terminara, mas não tinha nenhuma vontade de voltar ao universo de suas relações habituais. Tinha medo dessa volta. Permanecia ao lado dela no escuro, evitando qualquer contato com seu corpo. 

Logo depois ouviu soluços abafados, num gesto tímido, infantil, a mão da moça voltou a tocá-lo, e uma voz se fez ouvir, suplicante, entrecortada de soluços, que o chamava pelo nome e dizia -Sou eu, sou eu.

Ele se calava, imóvel, e compreendia muito bem a triste inconsistência da afirmação de sua amiga, na qual o desconhecido se definia pelo mesmo desconhecido.

Os soluços se transformaram num pranto sentido, a moça ainda repetiu por muito tempo esta comovente tautologia.

-Sou eu, sou eu...

Então ele começou a pedir socorro à compaixão (e teve que chamá-la de muito longe, pois ela não estava em nenhum lugar ao alcance de sua mão) para poder consolar a moça. Tinham ainda pela frente treze dias de férias.

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