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segunda-feira, 9 de abril de 2012

"... pela frente treze dias."

 Compartilhar a genialidade de alguém é sempre memorável, diante disso tenho aqui um presente. São as quatro ultimas partes de "O Jogo da Carona", conto kunderiano.

- Um casal em férias resolve fazer o típico joguinho de "vestir papeis" (ela: mulher que pede carona. Ele: chofer desconhecido), que a priori é uma mera ingenuidade. Porém, no decorrer do conto, os "amigos" afastam a penumbra do idealismo (que cada um tem de si) e se chocam ao humano, a realidade, o bruto. Tudo em um paradoxo magnífico que envolve o leitor. 


O jogo da carona. (trechos) 

9
Era um jogo engraçado. Era estranho, por exemplo, que o rapaz, embora perfeitamente colocado no papel do motorista desconhecido, não deixasse sequer por um momento de ver sua amiga na personagem da garota da carona. Tal fato, justamente, lhe era penoso, ver sua amiga ocupada em seduzir um desconhecido e ter o triste privilégio de assistir à cena, ver de perto o aspecto que ela apresentava e o que ela iria dizer quando o enganasse (quando fosse enganá-lo), tinha a honra paradoxal de servir, ele mesmo, de incentivo à sua infidelidade.

O pior era que ele a adorava mais do que amava, sempre sentira que a moça tinha realidade apenas dentro dos limites da fidelidade e da pureza e que, além desses limites, ela deixaria de ser ela mesma assim como a água deixa de ser água a partir do ponto de ebulição. Quando a via atravessar essa temível fronteira com uma elegância tão natural, sentia crescer sua raiva. 

Ela voltou do toalete queixando-se: -Um sujeito me disse “Quanto senhorita? “
-Não fique espantada! Você esta com aparência de puta.
-Sabe que não estou nem ligando?
-Você devia ter ficado com o tal sujeito!
-Mas estou com você.
-Pode encontrá-lo mais tarde.Basta combinar com ele.
-Ele não me agrada.
-Mas não iria absolutamente incomodá-la ter muitos homens na mesma noite.
-Por que não? Desde que sejam bonitões.
-Você prefere um depois do outro ou todos ao mesmo tempo?
-As duas coisas.

A conversa tornava-se cada vez mais escabrosa. Ela estava um pouco chocada, mas não podia protestar. No jogo, o homem não é livre, para o jogador o jogo é uma armadilha, se não se tratasse de um jogo, e se fossem um para o outro dois desconhecidos, a garota da carona já poderia ter-se ofendido há muito tempo e partir,mas não há meios de escapar a um jogo, o time não pode fugir do campo antes do fim, os peões do jogo de xadrez não podem sair das casas do tabuleiro, os limites do campo são intransponíveis. A moça sabia que era obrigada a aceitar qualquer coisa pelo simples fato de que se tratava de um jogo. Ela sabia que quanto mais longo o jogo fosse levado, mais seria um jogo e mais seria obrigada a jogar docilmente. De nada adiantaria pedir socorro à razão e avisar a alma espantada para guardar distância e não levar o jogo a sério. Justamente por ser um jogo, a alma não sentia medo, não se defendia e se abandonava ao jogo como a uma narcose.

O rapaz chamou o garçom e se levantou. -Vamos embora – disse ele
-Aonde? perguntou ela, fingindo não entender.
-Não faça perguntas!Venha!
-Olhe como você fala comigo!
-Como falo a uma puta.

10
Subiram uma escada mal iluminada, no alto, um grupo de homens um pouco embriagados esperava em frente ao banheiro. Ele a abraçou pelas costas de maneira a ter um de seus seios na palma da mão. Os homens que estavam perto do banheiro perceberam o fato e começaram a dar gritos. Ela quis se desvencilhar, mas ela mandou que se calasse. -Fique quieta! Disse ele, o que os homens acolheram com solidariedade brutal e alguns ditos obscenos dirigidos à moça. Chegaram ao primeiro andar. Ela abriu a porta do quarto e acendeu a luz. Era um quartinho com duas camas, uma mesa, uma cadeira e uma pia. O rapaz empurrou o ferrolho da porta e se virou para a moça. Ela ficou diante dele numa atitude provocante, com uma sensualidade insolente nos olhos. Ele a olhava e se esforçava para descobrir por trás dessa expressão lasciva os traços familiares que amava com ternura. Era como olhar duas imagens na mesma objetiva, duas imagens superpostas aparecendo transparentes uma sobre a outra. Estas duas imagens superpostas diziam-lhe que sua amiga podia ter tudo dentro de si, que sua alma era terrivelmente amorfa, que a fidelidade podia existir nela tanto como a infidelidade, a traição como a inocência, a sedução como o pudor, essa mistura selvagem lhe parecia tão repugnante quanto a mistura de um depósito de lixo. As duas imagens superpostas apareciam sempre transparentes, uma embaixo da outra, e o rapaz compreendia que a diferença entre sua amiga e as outras mulheres era uma diferença muito superficial, que no mais profundo do seu ser sua amiga era semelhante às outras mulheres, como todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os vícios possíveis, o que justificava suas dúvidas e seu ciúmes secretos, que a impressão de contornos delimitando a sua personalidade não era senão uma ilusão a que o outro sucumbia, aquele que a olhava, isto é, ele mesmo. Ele pensava que essa moça, tal como a amava, não era senão um produto de seu desejo, de seu pensamento abstrato, de sua confiança, e que sua amiga, tal como era realmente, era essa mulher que estava ali, desesperadamente outra, desesperadamente estranha, desesperadamente polimorfa. Ele a detestava.

-O que você está esperando? Tire a roupa!

Ela inclinou a cabeça coquetemente e disse -É preciso?

Este tom ecoava em seu ouvido um eco muito familiar como se outra mulher já lhe tivesse dito isso há muito tempo, mas nem sabia mais qual delas. Queria humilhá-la. Não à moça da carona, mas a ela, sua amiga. O jogo acabava se confundindo com a vida. O jogo de humilhar a moça da carona não era senão um pretexto para humilhar sua amiga. Ele esquecera que era um jogo e detestava a moça que estava ali diante dele. Encarou-a, depois tirou uma nota de cinqüenta coroas e lhe estendeu - Chega.?

Ela pegou as cinquenta coroas e disse -Você não é muito generoso.
-Você não vale mais do que isso – disse ele

Ela encostou o corpo no dele: - Você está se comportando mal comigo. Tem que ser mais gentil. Faça um esforço!

Ela o abraçou, estendendo os lábios para ele. Mas ele pôs os dedos em sua boca, afastando-as com suavidade. -Só beijo as mulheres que amo.

- E a mim você não ama?
-Não.
-Quem você ama?
-Isso é da sua conta...Tire a roupa!

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Nunca ela se despira assim. A timidez, a sensação de pânico no mais profundo de seu ser, a vertigem, tudo aquilo que sentia quando se despia em frente ao rapaz (e que ela não podia dissimular na escuridão), tudo aquilo desaparecera. Permanecia diante dele, segura de si, insolente, em plena claridade, e surpresa por descobrir de repente gestos até então desconhecidos ao tirar a roupa de forma lenta e embriagadora. Atenta a seus olhares, ela tirava a roupa, uma peça depois da outra, amorosamente, saboreando cada etapa desse despojamento.

Mas em seguida, quando ficou completamente nua diante dele, pensou que o jogo não podia continuar, que ao se despojar de suas roupas havia tirado a máscara e estava nua, o que significava que era apenas ela mesma e que o rapaz precisaria tomar a iniciativa de vir na sua direção, fazer um gesto com a mão, um gesto que apagaria tudo e a partir do qual só haveria lugar para suas mais íntimas carícias. Ela estava nua diante dele e havia parado de jogar, sentia-se embaraçada, e o sorriso que na realidade pertencia somente a ela apareceu em seu rosto, um sorriso tímido e confuso.

Mas ele permanecia imóvel, não fazia nenhum gesto para acabar com o jogo. Não via seu sorriso,que no entanto era tão familiar, só via diante de si o belo corpo desconhecido de sua amiga, que ele detestava. A raiva tirava de sua sensualidade todo o verniz sentimental. Ela quis se aproximar, mas ele disse - Fique onde está, para que eu a veja bem. Desejava apenas uma coisa, tratá-la como uma prostituta. Jamais conhecera uma prostituta e a idéias que fazia delas lhe fora transmitida pela literatura e por ouvir falar. Foi essa a imagem que evocou, e a primeira coisa que visualizou foi uma mulher nua com meias pretas, dançando na tampa lustrosa de um piano. Não havia piano no quarto do hotel, apenas uma pequena mesa encostada na parede, coberta com uma toalha. Mandou que sua amiga subisse nela. Ela fez um gesto de súplica, mas...-Você foi paga para isso – disse ele. 

Diante da implacável decisão que percebeu em seu olhar, ela se esforçou para prosseguir com o jogo, mas não tinha mais forças. Com lágrimas nos olhos, subiu na mesa. A mesa media quando muito um metro de comprimento por um de largura e estava bamba de pé em cima dela, sentia medo de perder o equilíbrio.

Ele estava satisfeito de ver esse corpo nu que se elevava diante de si, e cuja insegurança medrosa fazia com que se tornasse ainda mais tirânico. Queria ver esse corpo em todas as posições e sob todos os ângulos, como imaginava que outros homens o tinha visto e o veriam. Tornara-se grosseiro e sensual.Dizia palavras que ela nunca o ouvira pronunciar. Ela queria resistir, escapar desse jogo, chamou-o pelo nome, mas ele a obrigou-a a calar-se, dizendo que ela não tinha o direito de lhe falar nesse tom familiar. Acabou cedendo, transtornada, quase em pranto.Inclinou-se para a frente depois abaixou-se, obedecendo ao desejo dele, fez a saudação militar, depois um requebro para dançar um número de twist, mas, num movimento brusco,fez a toalha deslizar e quase caiu. Ele a amparou e a levou para a cama.

Abraçou-a. Ela ficou contente, pensando que o jogo sinistro terminara, que de novo iam ser como eram na realidade, quando se amavam. Quis encostar os lábios nos dele, mas ele a afastou, repetindo que só beijava as mulheres que amava. Ela explodiu em soluços. Mas nem conseguiu chorar, porque a furiosa paixão do amigo se apoderou pouco a pouco do seu corpo, terminando por abafar os gemidos de sua alma. Logo depois havia apenas dois corpos perfeitamente unidos na cama, sensuais e estranhos um ao outro. O que acontecia agora era o que ela sempre temera mais que tudo no mundo, o que sempre evitara: o amor sem sentimento e sem amor. Sabia que atravessara a fronteira proibida, além da qual se comportava sem a menor reserva e em total comunhão. Apenas experimentava, num recôndito do seu espírito, uma espécie de medo ao pensar que nunca sentira tal prazer e tanto prazer como dessa vez. – além dessa fronteira.

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Depois tudo acabou. O rapaz afastou-se dela e puxou o comprido fio que pendia sobre a cama.A luz apagou-se. Ele não queria ver o rosto dela, sabia que o jogo terminara, mas não tinha nenhuma vontade de voltar ao universo de suas relações habituais. Tinha medo dessa volta. Permanecia ao lado dela no escuro, evitando qualquer contato com seu corpo. 

Logo depois ouviu soluços abafados, num gesto tímido, infantil, a mão da moça voltou a tocá-lo, e uma voz se fez ouvir, suplicante, entrecortada de soluços, que o chamava pelo nome e dizia -Sou eu, sou eu.

Ele se calava, imóvel, e compreendia muito bem a triste inconsistência da afirmação de sua amiga, na qual o desconhecido se definia pelo mesmo desconhecido.

Os soluços se transformaram num pranto sentido, a moça ainda repetiu por muito tempo esta comovente tautologia.

-Sou eu, sou eu...

Então ele começou a pedir socorro à compaixão (e teve que chamá-la de muito longe, pois ela não estava em nenhum lugar ao alcance de sua mão) para poder consolar a moça. Tinham ainda pela frente treze dias de férias.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

"L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância", BERTRAND BONELLO. 2011


"Homens nunca olham suficiente dentro do sexo de uma mulher."

O filme supostamente está na França em algum lugar entre o fim do Seculo 19 e o início do 20. Toda a ação se passa num bordel do haut monde. Está aí o primeiro atrativo dessa produção: não é figura de linguagem dizer que a encenação é limitada pelas paredes da mansão de tolerância.
Bonello articula seu filme para justamente passar a sensação de espaço fechado e de passagem cíclica de tempo. Tão forte é essa percepção que o diálogo expõe como um grande evento a saída de uma das prostitutas para fora das paredes da casa com um cliente. É um acontecimento deixar os muros de L’Apollonide.
Não é por capricho, então, o começo à Elefante do filme. Somos convidados a acompanhar um período de tempo pela perspectiva de diferentes mulheres que lá trabalham, entrelaçando passagens e espaços em comum por ângulos diversos. Um comentário da característica circunspecta do enredo e do caráter paralelo de uma casa de tolerância na alta sociedade francesa. Paralelo porque moralmente recriminado, mas inteiramente incorporado a ela, mesmo que por debaixo dos panos.
Existe um trecho, porém, em que saímos – elas, as prostitutas, e nós, espectadores com olhos de clientes para seus corpos – da casa e vamos para fora. Ar livre, um rio, o vento gostoso que bate na pele. Muitas mulheres nuas, felizes porque peladas sem que isso signifique oferecer-se ao cliente que paga por momentos de prazer.
Naqueles momentos a palavra liberdade é encenada com gratidão rara.
Voltamos, porém – elas e nós –, à casa, ao espaço fechado, pois a diversão foi apenas uma tarde de verão. Não que o bordel seja melancólico em L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância. Não há um julgamento moral, felizmente, por parte do filme. Todavia, a melancolia é um sentimento que se faz presente porque lida-se com a frustração delas, as putas, e deles, os clientes. Porque o sexo, momento ímpar de cumplicidade, tem hora para acabar. E quando o fim chega, para o homem é a volta ao mundo; para a mulher, ou o fim do tormento (pois tem clientes que…) ou do sonho (pois na casa fala-se de sexo, mas também, como indica o título do filme, de amores).

O Sexo e o Tempo
Em tempos caretas, de novas gerações que admiram o vampiro que só aceita transar depois de casado – e escondendo o corpo da câmera –, e comparado com a longa tradição de filmes sobre sexo sem o dito cujo,L’Apollonide é um filme devasso. Ótimo, pois precisamos de devassidão no cinema, de mulheres e homens cujos corpos não são evitados pela câmera, mas sim elogiados por ela.
Iliana Zabeth, peitos redondos e beleza cândida, não é atalhada pela câmera. Nem Alice Barnole, que leva o fetiche de um cliente ao limite e protagoniza a cena mais dura e atroz do filme. Nem Céline Sallette, em sua magreza, ou Hafsia Herzi, para qual a visão eurocêntrica reserva a classificação “beleza exótica”.
De todos os elementos do filme que nos deixam atordoados após a sessão, sem ter muito claro na mente que tipo de produção acabamos de assistir, são dois que especialmente causam a confusão: o sexo e a definição temporal.
O primeiro, pelos fetiches e a falta de pudor de L’Apollonide em mergulhar neles. Um dos clientes só consegue ter prazer se transar com uma mulher dentro de uma banheira de champanhe. Outro, precisa experimentar o orgasmo da fronteira entre a projeção do poder e a execução da violência. Outro, pede que uma das mulheres se comporte como boneca, literalmente. Outro – não à toa, interpretado por Jacques Nolot, e quem conhece os filmes dele como diretor sabe do que estou falando – amam, ao seu modo, mas amam. Outro, um pintor, pouco se importa com as aparências e estabelece com as prostitutas um acordo sexual claro.
Além do abraço aos fetiches, outro aspecto de L’Apollonide que desconcerta é o hibridismo da localização temporal do filme. A direção de arte é típica de um filme de cortesãs, mas a colocação de várias cenas paralelas dentro do mesmo plano dá outro tom ao filme. A música abre espaço para as esperadas peças sinfônicas de um filme de época, mas é entrecortada por rock e blues moderno – Mozart anda ao lado de Lee Moses.
De que período histórico estamos mesmo falando? Essa associação cheia de ruídos entre tempo e estilos dão um caráter atemporal a L’Apollonide. Mas não se trata de atemporalidade como commodity do mercado cinematográfico – tão valorizada nos bastidores da produção quanto “história universal” –, mas da amplitude sincera que esse filme proporciona para a interação.
Um inclassificável jogo de contradições é este longa de Bonello. Previsível porque deixa claro o arco dramático de casa de tolerância, da alvorada ao seu crepúsculo. Imprevisível porque nos momentos em que esperamos delimitação clara ou contenção na condução, Bonello ou embaralha ou vai mais a fundo.
L’Apollonide fica nesse limiar entre mais um filme de época e um grande filme sobre o desejo e seus alimentos, seja no haut monde cortesão parisiense ou nos becos de uma metrópole cosmopolita do Século 21, e como suas respectivas sociedades o recebem. Ora de um lado da ponte, ora de outro.

Artigo de Heitor Augusto, revista Interlúdio. *

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O ROMANCE KUNDERIANO.



Entre os vários elementos constitutivos da narrativa kunderiana, o donjuanismo, pela profusão de imagens e sentidos, é com certeza, um dos que mais desperta a atenção do leitor. Embora seja em Risíveis amores que Kundera dispense total atenção à figura juanesca, as reflexões desenvolvidas em sua obra de modo geral, resultam das ações erótico-amorosas do conquistador ou conquistadores que nela transitam. A presença variada e sistemática dos don juans  no interior da narrativa permite-nos afirmar com certa tranqüilidade que vários arquétipos juanescos habitam os romances de Milan Kundera. No conjunto da obra que, estruturalmente, caracteriza-se pela descontinuidade narrativa, os sedutores kunderianos podem ser designados enquanto aqueles que assumem também o papel de fios condutores que entrelaçam e tecem as reflexões empreendidas pelo autor acerca do homem e de sua condição no mundo, produzindo, portanto os sentidos do texto.

A partir do ato interpretativo regido dessa maneira, tanto pelo sensível quanto pelo inteligível, o sujeito investigativo procura extrapolar de modo abstrato as linhas, buscando as entrelinhas ou as estruturas subterrâneas do texto. Esse interprete não descarta nenhuma possibilidade de conhecimento. Nessa perspectiva, do mesmo modo que percorre as estruturas íntimas do texto, também faz com que  os elementos investigados dialoguem com as exterioridades textuais. O elemento sobre o qual nos referimos, pode ser entre outros, uma personagem, o narrador, enfim, qualquer elemento textual que possa ser estudado como um fundamento epistemológico ou como produtor de sentidos.

 Nos romances de Milan Kundera, Don Juan desponta, na nossa concepção, como esse elemento produtor de sentidos, sendo, portanto, aquele que orientará a atividade investigadora na obra kunderiana. Dessa forma, sentimo-nos autorizados a denominá-lo enquanto o fundamento epistemológico da obra, ou seja, o elemento que irá autorizar – a partir de suas ações e relações no seio da narrativa - as reflexões acerca da estética romanesca desse autor. 
A ficção kunderiana se insere numa perspectiva estética adotada pelos grandes romancistas do século XX, a de procurar no romance a possibilidade de “exprimir uma nova concepção da realidade e uma nova forma de orientação em um mundo em que a ciência e a filosofia não são mais capazes de fornecer uma imagem totalizante.” próprio Kundera, a partir da compreensão de Descartes de que o homem seria “senhor e dono da natureza”, coloca diante de si as seguintes indagações e constatações do presente, 
  
    Depois de ter conseguido milagres nas ciências e na técnica, este “senhor e dono” se dá conta subitamente de que não possui nada e não é senhor nem da natureza (ela se retira, pouco a pouco, do planeta) nem da História (ela lhe escapou) nem de si mesmo (ele é guiado pelas forças irracionais de sua alma). Mas se Deus foi embora e o homem não é mais senhor, quem então é senhor? O planeta caminha no vazio sem nenhum senhor. Eis a insustentável Leveza do ser.(1988:p 41)  

O romance kunderiano é assim, fruto dessas inquietações acerca de seu tempo, e, como meio de testar as possibilidades humanas dentro de um mundo que não mais se sustenta nos paradigmas modernos, é que Milan Kundera coloca em movimento os ditos “egos experimentais”. Na concepção do romancista, a grande diferença entre a Filosofia e a Literatura reside na relação com a experiência, pois enquanto aquela realiza sua atividade num campo puramente abstrato, sem dispor de condições para  testar a validade do que foi pensado, esta dispõe dos egos experimentais para fazê-lo e, portanto compreender melhor as possibilidades humanas.  Nesse sentido é possível a afirmativa de que para Milan Kundera, os egos experimentais, extrapolam a denominação do que correntemente se entende por personagem, eles são, além de criações ficcionais, portadores da função de validar, problematizar ou negar as reflexões da voz filosófica que emerge das estruturas textuais. Ademais, essas criações do modo como o autor as define, permitem que as idéias e as reflexões contidas no romance ultrapassem o final da narrativa e, ao contrário do que acontece com os produtos de criação estética que não observam os princípios de dialogicidade, as consciências criadas por Milan Kundera ou o feixe de idéias e sentidos da qual são portadoras, continuam a ecoar mesmo quando finda a última página do livro. 


Fragmento do artigo "O donjuanismo na obra de Milan Kundera", de Maria Veralice Barroso e Wilton Barroso Filho . *  

SITE : MILAN KUNDERA



A LIBERDADE É AZUL, KRZYSZTOF KIESLOWSKI. 1993.


- A Liberdade É Azul (Trois Couleurs: Bleu, França/Polônia/Suíça/Grã-Bretanha, 1993)
Direção: Krzysztof Kieslowski
Elenco: Juliette Binoche, Benoít Régent, Floence Pernel, Charlotte Very
Duração: 98 minutos
Não existe dor maior que um ser humano pode sentir do que perder um filho. Não se trata de especulação, mas de um fato concreto; quem tem filho sabe que o simples pensamento sobre a possibilidade de nunca mais vê-lo já é capaz de causar arrepios. O que dirá, então, de perder não apenas um filho, mas também o marido, durante um acidente de automóvel absolutamente estúpido e banal? É isso o que acontece com Julie (Juliette Binoche), logo no início de “A Liberdade É Azul”, o belo filme de Krzysztof Kieslowski que abre a famosa Trilogia das Cores, composta também por “A Igualdade É Branca” e “A Fraternidade É Vermelha”.
A escolha do tema, em si, já é de uma ousadia quase herética do diretor. Quem mais pensaria em associar um sentimento aparentemente tão positivo e promissor, como a liberdade, a um acontecimento tão doloroso como a morte das duas pessoas que mais se ama? A abordagem do tema é, como quase todo o cinema de Kieslowski, surpreendente e inusitada, mas também intensa, delicada e sobretudo humana, muito humana. A lição que o filme nos dá – e a obra do cineasta polonês está repleta de lições, ainda que “ensinadas” sem nenhum cacoete didático – é simples e até banal, mas certamente verdadeira: o destino pode sortear as pessoas de muitas formas, inclusive com muita dor, e não há o que fazer a não ser viver cada situação que se apresenta com intensidade e honestidade.
Na ótica de Kieslowski, a morte da filha e do marido liberta Julie. Há nessa afirmação uma crítica sutil à instituição do casamento e à família. As duas coisas funcionam, quando analisadas sob esse ângulo, como amarras sociais; são hábitos culturais que estão profundamente arraigados no homem, talvez para combater a solidão que nos acompanha a vida inteira. De qualquer forma, a experiência de Julie é absolutamente radical. Após construir sua vida ao redor de dois indivíduos profundamente amados, ela vê de repente tudo desabar por causa de um vazamento no sistema de freios do carro novinho da família. Uma estupidez possível.
A dor dela é palpável; em certos momentos Julie pára sufocada, com dificuldade até para respirar. Mas é uma reação muda, pois ela não consegue chorar (“eu choro pela senhora”, diz em certo momento a criada da família, em cena belíssima). Não consegue nem mesmo se suicidar; tenta engolir um vidro inteiro de pílulas, ainda no hospital, mas não tem coragem. A cena é emocionante, e explica perfeitamente a radical decisão seguinte da personagem, em torno da qual todo o filme será organizado: Julie decide cortar relações com a vida, cometer uma espécie de suicídio a longo prazo. Doa os móveis, queima as lembranças do marido e da filha, abandona a casa e os amigos, deixa de trabalhar. Aluga um pequeno apartamento em Paris e decide esperar a morte chegar. Só que mesmo na vida mais acética, como mostra Kieslowski, o sentimento – aquilo que nos faz humanos – dá um jeito de brotar.
Um detalhe interessante do filme é o visual requintado, bem diferente do trabalho normal do diretor, que é mais despojado. A fotografia de Slavomir Idziak carrega nos tons azulados e capricha nas composições, algo incomum na filmografia do diretor; um bom exemplo é a tomada, logo no início, que mostra o vazamento no freio do carro em primeiro plano, com a filha de Julie indo fazer xixi na beira da estrada, ao fundo. As cenas com Julie na piscina, uma imensidão azul com iluminação fluorescente, traduzem perfeitamente a protagonista: gelada, triste. Vale lembrar que a palavra “blue”, em inglês, significa tanto “azul” quanto “sentimento de tristeza”. A escolha da história de Julie para ilustrar o tema da liberdade, bem como a cor associada ao sentimento, foram perfeitas.
Outro marco importante do filme realizado através de detalhes estéticos é a utilização da música de Zbigniew Preisner, um colaborador constante. Cabe aqui uma informação importante: o marido de Julie era um maestro famoso e compunha uma sinfonia para ser executada na cerimônia de unificação da Europa, trabalho que fica incompleto porque a mulher decide destruir as partituras. Mas o trecho mais emocionante da sinfonia fica gravado na cabeça dela, e é executado todas as vezes em que as memórias da família afloram; nesses momentos, a tela fica negra, como se a personagem sofresse um blackout emocional. Ou talvez Kieslowski quisesse preservar a intimidade de Julie naquele momento de dor suprema. As duas soluções são válidas, e muito bonitas.


“A Liberdade É Azul” é mais triste e doloroso do que outros filmes do cineasta. É verdade que a obra de Kieslowski está impregnada de um sentimento perene de melancolia, mas nesse filme existe dor, e ela é contundente. Outra característica do diretor, contudo, foi inteiramente preservada: é impossível antecipar os rumos da trama. Em sua nova vida, Julie vai ter que reaprender a usar os sentidos, bem como descongelar os sentimentos, mas isso ocorre paulatinamente, e de maneiras completamente inesperadas.
Perceba, no entanto, a sutileza e a inteligência de Kieslowski ao mostrar o relacionamento (frio, porém fundamental) entre Julie e a mãe, que está internada em um asilo. A velhinha nem sequer reconhece a filha, mas passa os dias assistindo a vídeos de gente de meia idade praticando esportes radicais, como bungee jumping. A mãe de Julie nem sabe, mas celebra a vida de uma forma que a filha não consegue. É interessante notar, portanto, que embora jamais converse com ela sobre isso – na verdade, não conversa com ninguém sobre assuntos pessoais –, são os poucos momentos com a mãe que insinuam a Julie uma mudança de comportamento.
Para os cinéfilos mais apressadinhos, que podem não ver muito sentido na trajetória errática da protagonista, a dica é ter um pouco de paciência e assistir ao filme até os créditos. Somente no final toda a trajetória de Julie vai fazer sentido. Aliás, quando o filme acaba – de uma maneira surpreendente, apenas para confirmar a regra de imprevisibilidade dos filmes do diretor –, dá até para dizer que “A Liberdade É Azul” é otimista. Dolorosamente otimista. A título de curiosidade: atente para a aparição-relâmpago do casal do filme seguinte da trilogia, “A Igualdade É Branca”, em uma rápida cena no tribunal.
A Versátil lançou o DVD no Brasil duas vezes, em edições bem diferentes. A primeira, em 1999, traz o filme em tela cheia (4:3, com laterais cortadas), som regular (Dolby Digital 2.0) e uma curta entrevista de quatro minutos feita com o diretor polonês. O filme foi relançado em 2006 com formato de imagem correto (wide 1.85:1 anamórfico), som remasterizado (Dolby Digital 2.0) e uma batelada de material extra, incluindo uma análise crítica da professora carioca Andréa França (que escreveu um livro sobre Kieslowski), cenas revisadas pelo próprio diretor, making of com cenas de bastidores e entrevistas. Todos os extras somam mais de uma hora e têm legendas em português. O longa também está disponível em uma caixa intitulada “Trilogia das Cores”, que engloba os dois outros filmes da série.


Texto de Rodrigo Carreiro.

SABINA

O drama de uma vida pode sempre ser explicado pela metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo sobre os ombros. Carregamos esse fardo, que suportamos ou não. Lutamos com ele, perdemos ou ganhamos. O que precisamente aconteceu com Sabina? nada. Deixara um homem porque quis deixá-lo. Ele a perseguira depois disso? Quis vingar-se? não. Seu drama não era de peso, mais de leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.

A COMPAIXÃO.


"Mesmo nossa própria dor não é tão
pesada como a dor co-sentida com outro,
pelo outro, no lugar do outro, multiplicada
pela imaginação, prolongada em centenas de ecos"


segunda-feira, 2 de abril de 2012

RAPAZ



Aos momentos com tons de linha turva ele se matem afastado, apesar de outrora os mesmos grudem em sua vida como goma de mascar. É um admirável rapaz, nem alto, nem tão 'burbo', nem tão feio, nem tão luxo, nem tão simples ou astuto. O que mais à encantava além daquele par de olhos castanhos escuro, impenetráveis aos desinteressastes, eram suas palavras. Tantas essas que tiravam minutos dos momentos dela, como um furto perfeito e capaz de convencer a vítima que é melhor assim. Seu jeito trêfego não denunciava a idade que carregava, em certas ocasiões ele mais parecia um menino. Os homens são assim, o lado travesso sempre eclode. E o dele fazia questão de entrar em cena na presença dela. Por mais que percebesse que estava sendo ridículo isso sempre costumava a acontecer. Juntos ele vivia o que queria, um filme com palavras atadas a momentâneos devaneios, juras citas que ela jamais ouvira ser dita por outro amor. Pele. Fazia questão de comer tudo o que ela tinha e inúmeras vezes repetia os pratos variados. Como uma exposição de arte, na qual os quadros estão em BRANCO para que o visitante toque-o com as mãos lambuzadas de tinta fresca e logo depois, do término, o mesmo lave-as e se desejar faça novamente sempre que quiser, pois telas pra ser pintadas nunca vão deixar de ser penduradas nas paredes de lá. O TAL RAPAZ, ERA POR TANTO, PERITO NA ARTE DE SER ARTE PRA ELA!

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"Não há dor que o sono não possa vencer."

A DOR, A DOR, A DOR, A DOR.



Expressar. Contos, fadas, sonhos, sangue. Expressão. Um silêncio de cinco meses que não fala. Um vazio  prematuro, que não enche. É a ilusão da noite bem dormida, é o não querer acordar. Um desejo de quase morte, que fica. Que finca. Medo. Um medo tremendo de viver o fim, dessa maneira, sem querer esperança. É a voz do incompleto que atordoa o branco de minhas horas.
O fogo frio das lágrimas continuas. Azul que é alheio ao celeste. A dor que pede chuva, para ser completa. Esqueça o brilho, esqueça os livros, esqueça o som e os cinematógrafos. Me venda a felicidade dela.  
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