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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Tudo aquilo a que se chama amor,


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"Cupidez, amor: ah! como estas duas palavras soam de modo diferente em nossos corações!... Pode ser, portanto, que ambas exprimam o mesmo instinto batizado duas vezes: a primeira do ponto de vista dos que já a possuem, dos que tem um instinto de posse levemente satisfeito e que receiam entretanto pelos seus "bens"; a segunda elogiosamente do ponto de vista dos insatisfeitos e dos ávidos que acham "bom" este instinto  O nosso "amor pelo próximo" não será o desejo imperioso de uma nova propriedade? E não sucede o mesmo com o nosso amor pela ciência, pela verdade? E, mas geralmente, com todos os desejos de novidade?
Cansamo-nos pouco a pouco do antigo, do que possuímos com certeza, temos ainda necessidade de estender as mãos. Mesmo a mais bela paisagem, quando vivemos diante dela mais de três meses, deixa de nos agradar, qualquer margem distante nos atrai mais: geralmente uma posse reduz-se com o uso.
O prazer que tiramos a nós próprios procura manter-se, transformando sempre algo novo em nós mesmos - é precisamente isto que denominamos possuir. Cansar de uma posse é cansar-se de si próprio. (Pode-se também sofrer com o excesso; pode-se, assim, dar o lisonjeiro nome de "amor" a necessidade de jogar fora, de dar.) Ao vermos uma pessoa sofrer, aproveitamos de bom grado essa ocasião para nos apoderarmos dela; é o que faz o homem caridoso, o indivíduo complacente. Também damos o nome de "amor" a este desejo de uma nova posse que desperta em nossa alma e sentimos prazer nisso como sentimos diante do apelo de uma nova conquista.
Mas é o amor de sexo para sexo que se revela mais nitidamente como um desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre sua alma como sobre o seu corpo, quer ser amado unicamente, instalar-se e reinar na outra alma como o mais alto e o mais desejável. Se considerarmos que isso ão significa nada menos do que excluir o mundo inteiro do gozo de um bem e de uma felicidade preciosa; se pensarmos que aquele que ama visa empobrecer e privar todos os mais competidores, e tornar-se o dragão do seu tesouro como o mais indiscreto "conquistador", o explorador mais egoísta; se imaginarmos enfim que todo o resto do mundo lhe parece indiferente, desbotado, sem valor, e que está pronto a efetuar qualquer sacrifício, a perturbar qualquer ordem estabelecida, a relegar para segundo plano tudo quanto lhe interessa, espantamo-nos que esta cupidez bárbara, esta furiosa injustiça do amor sexual tenha sido a tal ponto glorificada, deificada em todos os períodos da história, e, pior, que tenha extraído deste amor a ideia de amor concebida como sendo contrária ao egoísmo, quando representa talvez a sua expressão mais espontânea. O hábito, aqui, deve ter sido criado por aqueles que não possuíam e desejavam possui-lo; talvez tenham provavelmente havido sempre demais.(...) Existe realmente, aqui e além da terra, uma espécie de prolongamento do amor, no qual o desejo que dois seres experimentam um pelo outro dá lugar a um novo desejo, a uma nova cobiça, a uma sede superior comum, a de um ideal que ultrapassa a ambos: mas quem é que conhece esse amor? Quem o viveu? O seu verdadeiro nome é amizade. "

A Gaia Ciência, Nietzsche.

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