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domingo, 5 de agosto de 2012

CASA EMBRUXADA, MORADOR VISIONÁRIO

CAPÍTULO VII

Gilliatt era o homem do sonho. Vinham daí as suas audácias e as suas hesitações.
Tinha idéias propriamente suas.
Havia talvez nele a ligação do alucinado e do iluminado. A alucinação entra na
cabeça de um campônio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei
como Henrique IV. O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem. Rasga-se
bruscamente a sombra, deixa ver o invisível; depois fecha-se. Tais visões são às
vezes tr
ansfiguradoras; de um condutor de camelos faz Maomé, de uma cabreira
faz Joana d'Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvario sublime. É
o fumo da sarça ardente. Resulta daí um misterioso estremecer de idéias: o doutor
dilata-se até o vidente, o poeta até o profeta; resulta Horeb, Cédron, Ombos, a
embriaguez do louro mastigado da Castália, as revelações do mês Busion; resulta
Peléia em Dodona, Femônoe em Delfos, Trofônio em Lebadéia, Ezequiel no Kebar,
Jerônimo na Tebaida. Na maior parte dos casos o estado visionário abate o
homem, e o embrutece. O embrutecimento sagrado existe. O faquir carrega a sua
visão, como o habitante alpino a sua papeira. Lutero falando aos diabos no celeiro
de Wurtemberg, Pascal tapando o inferno com o biombo de seu gabinete, o obi
negro, dialogando com o deus branco chamado Bossum, é o mesmo fenômeno
diversamente produzido, segundo a força e a dimensão de cada cérebro. Lutero e
Pascal são e ficam sendo grandes; o obi negro é imbecil.
Gilliatt não era tanto, nem tão pouco. Era um pensativo. Nada mais. Contemplava
a natureza de um modo singular.
Tinha visto algumas vezes, na água do mar, completamente límpida, animais
inesperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quais, fora da água,
assemelhavam-se a cristal mole, e, tornados à água, confundiam-se com ela, pela
identidade de transparência e de cor; disto concluía ele que, se a água era
habitada por transparências vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por
transparências igualmente vivas. Os pássaros não são os habitantes, são os
anfíbios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Dizia ele: se o mar está cheio
de criaturas, por que motivo a atmosfera será vazia? Criaturas cor do ar podem
escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que essas criaturas
não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como o mar; os
peixes do ar serão talvez diáfanos, benefício da providência criadora, tanto a
nosso favor, como a favor deles; deixando passar a luz através da sua forma, e
não fazendo sombra, ficam ignorados de nós, e nada poderemos saber. Gilliatt
imaginava que, se se pudesse esvaziar a atmosfera, pescando-se no ar como num
tanque, achar-se-ia uma porção de criaturas surpreendentes. E, acrescentava ele,
na sua cisma, muitas coisas se explicariam.
A cisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina com o sono e preocupase
a respeito dele, como de sua própria fronteira. O ar habitado por transparências
vivas seria o começo do Desconhecido; além abre-se a vasta porta do possível.
Outros seres e outros fatos. Nada sobrenatural; mas a continuação oculta da
natureza infinita. Gilliatt, no ócio laborioso que compunha a sua existência, era um
observador estranho e fantástico. Chegava a observar o sono. O sono está em
contato com o possível, que também chamamos o inverossímil. O mundo noturno
é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano, sobre o qual
pesa uma coluna atmosférica de 15 léguas de altura, chega à noite fatigado, cai de
fraqueza, deita-se, repousa; fecham-se os olhos da carne; então, naquela cabeça
adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se outros olhos, aparece o
Desconhecido. As coisas sombrias do mundo ignorado tornam-se vizinhas do
homem, ou porque haja verdadeira comunicação, ou porque as distâncias do
abismo tenham crescimento visionário; parece que as criaturas invisíveis do
espaço vêm contemplar-nos curiosas a respeito da criatura da terra; uma criação
fantasma sobe ou desce para nós, no meio de um crepúsculo; ante a nossa
contemplação espectral, uma vida que não é a nossa agrega-se e dissolve-se,
composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquele que dorme, nem
completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades estranhas,
as vegetações extraordinárias, as cores lívidas, terríveis ou risonhas, as larvas, as
máscaras, os rostos, as hidras, as confusões, os luares sem lua, as obscuras
decomposições do prodígio, o crescer e o decrescer no meio da espessura turvada,
a flutuação de formas nas trevas, todo esse mistério que chamamos sonho, e que
não é mais do que a aproximação de uma realidade invisível. O sonho é o aquário
da noite.
Assim sonhava Gilliatt. (Victor Hugo, Os trabalhadores do Mar)

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